Criatividade minada pela IA? Como evitar que a “Estética Default” engula a moda brasileira 

Evite a “Estética Default” da IA e aprenda a criar imagens de moda brasileiras autênticas, valorizando cultura, cores e técnicas locais.

Recebo mensagens todos os dias com a mesma pergunta: “Michelle, por que minhas imagens ficam com cara de inteligência artificial, tudo muito parecido?”. Minha resposta começa com um “depende”, mas termina sempre no mesmo ponto: quem treina, influencia. Já trabalhei com rotulagem e curadoria de dados e posso afirmar: todo modelo carrega o viés de quem o treinou e isso aparece no resultado final, do casting à iluminação. Estudos recentes mostram estereótipos persistentes em modelos populares (raça, gênero, profissões). 

Quando falamos de Estética Default, vale olhar a base: O LAION-5B, conjunto de dados usado para treinar/fazer fine-tuning de modelos como o Stable Diffusion, tem 5,85 bilhões de pares imagem-texto, sendo ~2,32 bilhões em inglês*. Isso importa porque idioma é cultura, e cultura guia o que o modelo entende como “elegante”, “poderoso” ou “moda”. 

Especificidade muda a distribuição de resultados: 

Prompt Genérico: elegant black dress, studio fashion photo


Prompt Específico: elegant long black dress made of silk, studio fashion photo, full body, short hair brunette model, artsy vintage background, natural lighting; style: modern, classic and youthful; shot on 50mm 

E aí entra a armadilha do prompt genérico. Se peço “vestido preto elegante”, a inteligência artificial devolve o que ela entende por “elegante”, não o meu conceito de “elegante”. Na ausência de direcionamento, o modelo puxa um template aprendido (comprimento, caimento, styling, luz, estética, sensação, tecido) e repete o padrão. Para virar esse jogo, especificidade é estratégia: modelagem, materiais, técnicas (bordado filé, richelieu, renda renascença, estamparia manual, tricô…), referências culturais, direção de foto (lente, ângulo, iluminação), atmosfera e critérios do que é “elegante” nessa peça/imagem. “Seja específico e descreva; deixe pouco espaço para interpretação.” – Microsoft Learn 

Especificidade cultural reduz a Estética Default e aumenta a brasilidade. 

No Brasil, o cenário é paradoxal: temos base e apetite para inteligência artificial, mas consumimos majoritariamente modelos treinados fora. O ILIA 2024, índice latino-americano de IA organizado por ECLAC/CENIA, coloca o Brasil entre os líderes regionais em Pesquisa, Desenvolvimento e Adoção (79,15 pontos), ou seja, há capacidade para criar nosso borogodó tecnológico. “Brasil figura entre os países com capacidades mais avançadas em P&D e adoção de IA na região.” – CEPAL 

O ecossistema privado vem ganhando tração: a Microsoft anunciou investimento de R$ 14,7 bi (US$ 2,7 bi) em nuvem/IA no país, e o governo lançou o Plano Brasileiro de IA 2024–2028 (PBIA) com R$ 23 bi para infraestrutura, talentos e inovação (base para datasets, fine-tunings e ferramentas com DNA local). 

Prompt: black dress, elegant look, studio fashion photo, direct front light, shiny fabric, busy background 

Usamos a Imagem anterior como “Image Prompt” para usá-la como referência e testar iterações: 

Prompt com Iterações: black tailored dress, reduce fabric shine to subtle satin, sleeves longer +2 cm, side light to create soft shadows, cleaner background

Empreendedorismo não fica atrás: mapeamento Liga Ventures + iFood identificou 772 startups ativas que aplicam IA no país (agro, saúde, varejo, economia criativa, etc). Para a moda, isso significa parceiros potenciais para curar datasets brasileiros (corpos, peles, biotipos, técnicas artesanais), ajustar modelos (fine-tuning) e prototipar fluxos criativos sem

perder nosso repertório. Agora, voltando à pergunta “como faço imagens mais autorais, com menos cara de IA?”, segue minha visão prática, do ateliê para a tela: 

1. Defina o que ‘belo’ quer dizer no seu projeto. Troque adjetivos vagos por descrições visuais: “alfaiataria com ombro estruturado, cintura marcada, cetim de seda com brilho sutil, fenda lateral 30 cm, bordado filé alagoano, fotografia 50 mm em contraluz quente”. 

2. Traga Brasil para o prompt. Referências materiais, técnicas, paisagens, festas, artesanato.. Temos que ensinar o modelo a olhar para nós. Isso reduz o “template ocidental” e aumenta a chance de resultados com mais brasilidade. O dado do LAION lembra: se você não especifica, o inglês (e sua estética) domina. 

3. Itere com critérios. Em vez de “quero mais elegante”, escreva: “melhorar caimento no quadril; reduzir brilho da seda; alongar manga 2 cm; manter bordado filé com mais profundidade de cor; luz lateral dramática”. “Prompts claros, específicos e iterativos melhoram substancialmente a qualidade.” – https://help.openai.com/en/articles/10032626-prompt-engineering-best-practices-for chatgpt? 

4. Misture IA com processos de criação. Faça como nos processos tradicionais: moodboard → briefing visual (léxico) → estudos de variação → seleção → refinamento técnico (peça/caimento) → aprovação. IA entra como extensão do processo, não atalho cego e sem sua criatividade. 

No fim, não é só sobre “usar IA”. É sobre ensinar a IA a dialogar com o seu repertório, decidindo o que fica ou sai. A boa notícia é que cada vez mais temos base (talento, mercado e investimento) para construir uma estética computacional que inclua a diversidade brasileira. Cabe a nós, criativos, afiar o léxico, curar referências e escrever prompts que sejam, de fato, nossos. 

Criar com inteligência artificial, além de ser um exercício de autoconhecimento estético e léxico, de responsabilidade cultural. 

Referências 

LAION-5B e idioma (2,32B pares em inglês):  Schuhmann, C. et al. LAION-5B: An open large-scale dataset for training next generation image-text models. arXiv (2022).  Disponível em: https://arxiv.org/abs/2210.08402

Stable Diffusion treinado em subconjuntos do LAION-5B:  NeurIPS 2022 – Datasets and Benchmarks Track (Supplemental).  Disponível em:  https://papers.nips.cc/paper_files/paper/2022/file/a1859debfb3b59d094f3504d5ebb6c25-Su pplemental-Datasets_and_Benchmarks.pdf 

Viés em geradores de imagem (raça/gênero/profissões):  Scientific Reports (Nature Portfolio), 2025. Measuring bias in generative AI image models. Disponível em: https://www.nature.com/articles/s41598-025-99623-3 

Brasil em P&D/Adoção (ILIA 2024):  CEPAL / CENIA. Latin American Artificial Intelligence Index (ILIA) reconfirms Chile, Brazil and Uruguay as regional leaders in AI development.  Disponível em:  https://www.cepal.org/en/pressreleases/latin-american-artificial-intelligence-index-ilia-reconfir ms-chile-brazil-and-uruguay 

Investimentos em IA no Brasil (PBIA R$ 23 bi; Microsoft US$ 2,7 bi): Reuters. Brazil launches R$23 billion AI plan for 2024–2028. (2024).  Microsoft News Center Brasil. Microsoft anuncia investimento histórico de R$14,7 bilhões em nuvem e IA no Brasil. (2024).  Disponível em:  https://news.microsoft.com/pt-br/2024/02/21/microsoft-anuncia-investimento-historico-de-r14 7-bilhoes-em-nuvem-e-ia-no-brasil 

Startups de IA no Brasil (772):  Liga Ventures + iFood. Estudo aponta mais de 750 startups dedicadas a explorar IA no Brasil. TI Inside (2024).  Disponível em:  https://tiinside.com.br/23/04/2024/estudo-aponta-mais-de-750-startups-dedicadas-explorand o-ia-no-brasil

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Michelle Douglas

Michelle Douglas é uma profissional reconhecida por seu trabalho na interseção entre moda e tecnologia. Possui uma trajetória acadêmica sólida, com passagens pela Faculdade Santa Marcelina, Central Saint Martins, University of the Arts London e Istituto Marangoni. Desenvolve projetos que exploram o uso estratégico da inteligência artificial na indústria da moda, aliando criatividade, sensibilidade estética e pensamento crítico. Com uma visão de futuro e abordagem multidisciplinar, vem se consolidando como uma das vozes mais relevantes da nova geração criativa conectada à transformação digital.