O abismo entre quem desenvolve Inteligência Artificial e quem compra

O desalinhamento entre expectativas e realidade técnica está custando caro às empresas – e a solução passa por educação mútua.

A inteligência artificial tornou-se uma prioridade estratégica para empresas de todos os setores. Conselhos administrativos pressionam por iniciativas de inteligência artificial, executivos anunciam transformações digitais e consultorias vendem a promessa de ganhos exponenciais. No entanto, entre o discurso entusiasmado e a implementação efetiva, existe um abismo que poucos ousam reconhecer: o desalinhamento fundamental entre quem compra soluções de inteligência artificial e quem as desenvolve.

Esse fosso não é apenas técnico. Ele é, sobretudo, de expectativas, linguagem e compreensão mútua. De um lado, gestores que enxergam a inteligência artificial como uma varinha mágica capaz de resolver problemas complexos da noite para o dia. Do outro, cientistas de dados e engenheiros que lutam para traduzir algoritmos sofisticados em valor mensurável de negócio.

O efeito ChatGPT

O advento da inteligência artificial generativa ampliou dramaticamente esse abismo. Desde o lançamento do ChatGPT, em novembro de 2022, muitos executivos passaram a acreditar que a inteligência artificial alcançou um patamar de maturidade onde qualquer problema empresarial pode ser resolvido com um prompt bem elaborado. Essa percepção distorcida — que podemos chamar de “achismo tecnológico” — tem consequências custosas.

Não raro, empresas investem milhões em iniciativas de inteligência artificial sem compreender as limitações fundamentais da tecnologia. Projetos são concebidos com cronogramas irrealistas, escopos mal definidos e métricas de sucesso desconectadas da realidade operacional. O resultado é previsível: frustração generalizada, investimentos desperdiçados e uma falsa sensação de inovação que mascara a ausência de transformação real.

Benefícios reais, expectativas realistas

Isso não significa que a inteligência artificial seja apenas hype. Pelo contrário: quando bem aplicada, a inteligência artificial gera valor substancial e mensurável. A automação de tarefas repetitivas libera profissionais qualificados para atividades estratégicas. A análise massiva de dados em tempo real revela padrões impossíveis de detectar manualmente. Sistemas de recomendação personalizam experiências em escala. Modelos preditivos apoiam decisões críticas com base em evidências quantitativas.

Empresas em diversos setores já colhem esses frutos. No varejo, algoritmos de precificação dinâmica otimizam margens em tempo real. Na saúde, modelos de machine learning auxiliam no diagnóstico precoce de doenças. Na indústria, manutenção preditiva reduz custos operacionais significativamente.

Mas esses resultados não surgem por acaso. Eles são fruto de planejamento rigoroso, experimentação disciplinada e, crucialmente, de uma compreensão realista sobre a natureza iterativa dos projetos de IA.

A natureza interativa da IA

Aqui reside um dos maiores pontos de atrito. Executivos acostumados com projetos de software tradicionais esperam um processo linear: requisitos definidos, desenvolvimento executado, produto entregue. Essa lógica funciona bem para sistemas transacionais, mas colapsa quando aplicada à inteligência artificial.

Projetos de inteligência artificial e ciência de dados são, por natureza, experimentais. Eles evoluem à medida que aprendem com os dados. Hipóteses são testadas, modelos são refinados, abordagens são descartadas ou aprimoradas. Não há como prever com exatidão, no início do projeto, qual algoritmo será mais eficaz ou quais features terão maior poder preditivo.

Essa incerteza inerente exige maturidade organizacional. Exige também uma mudança de mentalidade: de contratos rígidos para parcerias colaborativas, de escopos fechados para objetivos flexíveis, de entregas finais para aprendizado contínuo.

Construindo pontes

Mitigar esse abismo é responsabilidade compartilhada. Cientistas de dados precisam sair da zona de conforto técnica e desenvolver fluência em linguagem de negócios. Não basta construir modelos precisos; é necessário articular claramente como esses modelos impactam receitas, custos ou experiência do cliente.

Os gestores, por sua vez, devem investir em educação. Compreender conceitos básicos de machine learning, de inteligência artificial de forma geral e entender as probabilidades envolvidas em processos realizados por modelos de inteligência artificial, não são mais opcionais para lideranças que tomam decisões sobre transformação digital. É preciso entender a diferença entre automação simples e aprendizado de máquina, entre chatbots baseados em regras e modelos de linguagem generativos, entre correlação e causalidade. Além disso, parcerias estratégicas são essenciais nesse processo, assim como a confiança nas empresas e nos profissionais que irão implementar inteligência artificial nos processos.

Mais importante: ambos os lados devem aceitar que inteligência artificial não é mágica, é método. É ciência aplicada com rigor, disciplina e paciência. É experimentação controlada, validação estatística e refinamento constante.

O caminho à frente

À medida que a inteligência artificial se torna cada vez mais central para a competitividade empresarial, esse abismo entre compradores e desenvolvedores não pode persistir. Empresas que conseguirem construir pontes efetivas — através de comunicação clara, expectativas alinhadas e colaboração genuína — terão vantagem competitiva decisiva.

As que não conseguirem continuarão presas em um ciclo vicioso: investimentos vultosos, resultados decepcionantes, ceticismo crescente e oportunidades perdidas. Porque, ao fim, a inteligência artificial só deixa de ser promessa e se transforma em resultado concreto quando existe compreensão mútua, responsabilidade compartilhada e compromisso com a realidade — por mais complexa que ela seja.

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Felipe de Moraes

Felipe de Morais é Head de Data Science na Paipe e professor na Universidade do Vale do Rio dos Sinos (UNISINOS). Doutor em Computação Aplicada com ênfase em Inteligência Artificial, realizou pesquisas na University of Pittsburgh e estudos na Michigan State University. Com mais de 20 artigos científicos publicados e 10 anos de experiência, foi premiado no Congresso Brasileiro de Computação em Educação.